segunda-feira, 5 de maio de 2008

Evangelho e Cultura; a busca de um diálogo sustentável.
Dionísio Oliveira da Silva[1]

Introdução

Existem coisas que precisamos levar em consideração, enquanto há outras que podemos deixar passar batido sem muita preocupação. Uma dessas coisas eu encontrei lendo o livro “Mapas para a Festa” do Otto Maduro, sobre Análise da Realidade e, é uma critica que pode ser aplicada a certos aspectos do discurso evangélico e suas resposta às perguntas que lhe são dirigidas. A coisa foi a seguinte: “Pilotando sozinho um avião, que em um dado momento entrou em pane, uma mulher se lança de pára-quedas sobre uma floresta totalmente desconhecida. Ao cair, ficou pendurada nos galhos de uma árvore, praticamente impossibilitada de alcançar terra firme. Depois de algumas horas nessa condição, enxerga, lá embaixo, a alguns metros de distância, um homem muito bem trajado que passeia pela floresta. Desesperada, grita para o homem: "Oi! Por favor, meu senhor! Olhe cá para cima! Aqui! Me diga onde estou?” O homem surpreendido olha para o alto da árvore e responde à mulher: “Ora... a senhora está pendurada numa árvore!” “O Senhor é teólogo?”,pergunta-lhe a aviadora. “Sim, senhora, mas como é que sabe? “ “Pela resposta que me deu: absolutamente verdadeira, mas perfeitamente inútil”[2]. Infelizmente, isto se assemelha realmente às respostas que a grande maioria dos evangélicos e suas instituições têm dado às perguntas vitais colocadas pela cultura direta e indiretamente falando. O discurso evangélico não tem levado a sério determinados aspectos da realidade cultural e por isso tem dado respostas verdadeiras, porém, inúteis. Fala-se a verdade, mas de uma forma totalmente irrelevante, sem poder ser aplicada na prática para surtir o efeito desejado por Deus, já que a sua Palavra é verdade prática e transformadora.

É sobre a relação entre o Evangelho e a Cultura e a necessidade de uma aproximação mais fecunda entre ambos que pretendo apresentar algumas reflexões tendo como ponto de partida o texto de Mateus 5.13-16. Me desafio a fazer isso não apenas por questões acadêmicas, mas principalmente porque entendo que a relevância do discurso e do dialogo evangélico com a cultura faz parte daquelas coisas que precisamos levar em consideração. O texto diz o seguinte:

"Vocês são o sal da terra. Mas se o sal perder o seu sabor, como restaurá-lo? Não servirá para nada, exceto para ser jogado fora e pisado pelos homens."Vocês são a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade construída sobre um monte. E, também, ninguém acende uma candeia e a coloca debaixo de uma vasilha. Ao contrário, coloca-a no lugar apropriado, e assim ilumina a todos os que estão na casa.Assim brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai de vocês, que está nos céus.”(NVI)

Entre outras coisas que este texto pode significar, duas têm a ver diretamente com o meu assunto; a participação e transformação; luz e sal. Dois aspectos daquilo que pode nascer da relação entre o Evangelho e a Cultura. Sem demorar em extensos raciocínios hermenêuticos sobre o texto bíblico exaustivamente realizado por especialista de renome, [3] quero ir diretamente ao que me interessa na relação entre Evangelho e Cultura afirmando que: a mensagem do Evangelho só é útil quando não separa sua capacidade de reconstruir e renovar as situações (sal) com a sua capacidade de iluminar e mostrar as situações a todos, com o faz a luz que emana de sua fonte e penetra a mais densa e remota escuridão. E não pode haver reconstrução de estruturas e da própria realidade pela mensagem do Evangelho sem a idéia de serviço e relacionamento mutuo entre ele e as instâncias culturais. A participação pela inserção ativa na cultura e pelo diálogo são elementos indispensáveis para se dialogar de modo relevante com as estruturas da realidade que carecem de renovação e de sentido e ao mesmo tempo ser estimulado para reavaliações e novas investidas. Atitudes como essas também servem para capacitar as pessoas de ambos os lados para compreenderem melhor a realidade e criticarem de forma sábia e correta a situação. As duas metáforas usadas por Jesus, pelas próprias características dos elementos que ele utilizou levam para essa direção. Por ser sal, a vida e o testemunho dos cristãos assumem característica relacionadas a preservação, daquilo com o qual entra em contato. Tão relevante também, e o fato de agregar sentido àquilo que precisa dele.

Pensando em termos do Evangelho anunciado pelos cristãos, este anúncio deve preservar o sabor e sentido que o Evangelho oferece à vida das pessoas com as quais entra em contato. Da mesma maneira a função da luz que ilumina locais inóspitos dando visibilidade e revelando como eles são de fato, deve ser de forma análoga aplicada ao Evangelho em sua relação com a Cultura, no sentido de ser um instrumento prático e crítico para a construção do conhecimento e analise da realidade que promova a melhoria da vida. Essa aproximação contribui para que as pessoas interpretarem os acontecimentos e construam uma realidade muito mais palpitante, justa e humanizadora. Mas tal transformação só pode ocorrer quando este mesmo Evangelho for capaz de penetrar e compartilhar as mais diversas e diferentes situações e experiências. Mas, não se deve esquecer um detalhe importante; os elementos utilizados na metáfora por Jesus, não agregam pré-julgamentos. Ambos, são apenas criadores de sentido, visibilidade, que auxiliam numa auto-avaliação e decisão pessoal. Da mesma forma, penso que para se resgatar a relevância da mensagem evangélica em nossa cultura, e em outras quaisquer, o Evangelho deve ser apresentado pela sua capacidade de trazer sentido e gosto pela vida, de motivar e ajudar as pessoas descobrirem seus valores,de se humanizarem mais e reconstruir uma nova realidade, com discernimento critico das coisas e dos acontecimentos, sem pré-conceitos e pré-juizos aplicado sobre as outras pessoas.
Este é o desafio que temos,e diante desta situação: quais deveriam ser as nossas atitudes?

Há três maneiras[4] normalmente utilizadas pela igreja cristã em geral com relação à cultura, principalmente quando há algum impasse entre os valores e costumes.

1- Rejeitar a cultura e ir em busca de formas e modos do passado. Uma forma de alienação evangélica. Esta tem sido a atitude de grande parte das igrejas e movimentos evangélicos, que optam principalmente pelas formas e costumes judaicos, formas essas que apesar da sua riqueza na maioria das vezes não comunica algo relevante em termos práticos para a cultura brasileira. O isolamento e a indiferença da Igreja podem ser também percebidos nas mais diversas formas de retiros que tem sido realizado pelas igrejas evangélicas, em datas especificas e em outras ocasiões. A indisposição para dialogar com determinadas expressões da cultura tem motivado esta forma de reação. Pelo que parece, quando o momento é mais propício, a comunidade evangélica se isola e se aliena. É difícil entender o sentido de ser sal e luz numa postura desse tipo. Talvez o que falta ser compreendido é que: relevância prática envolve experiência que pode ser compartilhada quando o momento sinaliza uma mínima abertura e não quando se quer. Qualquer atitude que não leve isso em consideração pode resultar em “respostas absolutamente verdadeiras, mas totalmente inúteis”.

2- Aceitar indiscriminadamente o pluralismo acrítico, relativizando tudo, como se tudo na cultura fosse igualmente bom e que a fé cristã e o Evangelho pode coexistir sem problemas com ela. O pano de fundo para esta forma de pensamento está no conceito missiológico entendido erroneamente de que como o Evangelho é inter, trans, ou até supra-cultural [5]e não têm raízes em nenhuma cultura, a coisa pode ser levada dessa maneira. O perigo de se relacionar com a Cultura a partir desse pensamento é não levar em consideração que há diferença entre valores dos Evangelhos e da Cultura,[6] e que não há compatibilidade total entre ambos. Neste caso há grande chance do Evangelho não se tornar de fato relevante. Há uma série de práticas na igreja cristã que mostram a influencia negativa da cultura na prática evangélica, principalmente nos campos dos valores, refletindo conseqüentemente na moral evangélica.

3- Dialogar com a cultura contemporânea. A igreja deve desenvolver um diálogo crítico com a cultura, reconhecendo nela o que é útil, transformando o que poder ser transformado, porque é reprovável e se comprometendo a suprir aquilo que está faltando[7].

Dialogar para transformar aquilo que deve ser transformado, reconhecer e fortalecer o que é significativo e principalmente se envolver com uma participação inteligente nos diversos âmbitos da sociedade, com a convicção de que o conteúdo do Evangelho não tem apenas funções escatológicas, mas também tem a ver com mudanças na qualidade de vida das pessoas no seu dia-a-dia. Este é um conceito que precisa ser enfatizado e repensado na interpretação cristã em geral, pois, a riqueza e a eficácia do Evangelho é inesgotável, e a experiência prática de instituições sociais, educacionais e Ongs, têm sinalizado que há muito espaço onde o Evangelho pode ser renovador como instrumento para resgate da cidadania em suas diversas dimensões. O uso da mensagem apenas para resolver a situação depois da morte[8] esvazia o sentido e valor cotidiano da mensagem evangélica. É necessário dialogar com a sociedade sem aquela mentalidade de catequização ou conversão a qualquer custo, como foco principal do relacionamento do Evangelho e a Cultura. Os valores do Evangelho, em sua grande maioria podem ser praticados pela sociedade e produzir resultados relevantes sem visar exclusivamente a exigência de conversão institucional. Quanto do principio da justiça, da solidariedade, do amor, do valor do ser humano, da ética de Jesus pode ser aplicado à prática social para aumentar a qualidade de vida das pessoas e por conta disso elas se interessarem pelo Evangelho? Por outro lado, quando falamos de rejeitar o que é reprovável, quanta injustiça foi e tem ainda sido cometida pelas pessoas e instituições evangélicas, por falta de conhecimento da situação e de julgamento prematuro das coisas? Que critérios usamos para determinar o que deve ser reprovado? Será que ouvimos outros sobre o assunto, ou apenas usamos o poder para isso? Usamos o mesmo critério para determinar o que é útil? Sem ouvir os outros, fica muito difícil chegar a uma conclusão justa e aceitável. O diálogo seria um aliado fortíssimo para se obter êxito. Os primeiros cristãos têm muito a nos ensinar sobre a utilização de elementos úteis da cultura para a propagação do Evangelho em seu tempo, quando o fazem a partir da utilização de elemento das culturas grega e romana.

Para nós evangélicos é muito mais cômodo assumir a postura de portadores de conceitos e verdades absolutos e universais que nos confere a condição de guardiões do conhecimento perfeito e imutável. Contudo, os fatos e experiências históricas e bíblicas têm nos desafiado a pensar de forma diferente, porque mesmo o Evangelho não prioriza conceitos e normas, mas vidas e pessoas e isso é mais que suficiente para determinar a tendência que a comunicação do Evangelho deve tomar no seu relacionamento com a Cultura. Fato é, e afirmado pelo texto de Mateus que, é nossa a responsabilidade dar o ponta-a-pé inicial para este relacionamento mútuo, com uma atitude mais próxima possível daquela de Jesus, tendo em nossos corações o que ele nos ensinou:

“Pois bem, se eu, sendo Senhor e Mestre de vocês, lavei-lhes os pés, vocês também devem lavar os pés uns dos outros. Eu lhes dei o exemplo, para que vocês façam como lhes fiz.Digo-lhes verdadeiramente que nenhum escravo é maior do que o seu senhor, como também nenhum mensageiro é maior do que aquele que o enviou. Agora que vocês sabem estas coisas, felizes serão se as praticarem”. (Jo. 13.14-17 –NVI)

Conclusão:

Ao lidar com a relação Evangelho e Cultura me parece que em ambos os lados há muito o que se compartilhar. Tudo depende da atitude de ambas as partes. Mas, no que se refere ao Evangelho, por sua própria natureza divina a igreja tem mais dívida com a cultura do que o inverso. A razão desta dívida talvez tenha surgido por causa da visão maniqueísta que a igreja assumiu em determinando momento da sua história, onde o mundo é visto como uma instancia totalmente maligna de onde se tem que fugir, contrariando o próprio modo de Jesus ver a relação da Igreja com o mundo em, Jo 17. 15-17, ( “ Não rogo que os tire do mundo..., eu os enviei ao mundo”) que sinaliza a necessidade de uma relação concreta e otimista. O problema da Igreja é que o lugar seguro para onde se deve ir ou é um esconderijo terrestre longe de todos, ou no paraíso espiritual futuro que pela ênfase desregrada que é apresentada, aliena a igreja da sociedade e da própria realidade. As dimensões do real e do espiritual não têm sido harmonizadas com sucesso pelo discurso da Igreja. Por puro pragmatismo a solução foi então procurar se isolar de uma ou de outra maneira de toda experiência que não tivesse o crivo do modelo de espiritualidade que a igreja assumiu, mesmo sabendo que o mundo é amado pelo Pai, que como prova desse amor entregou seu próprio Filho para salva-lo. Essa postura da igreja é tão radical que infelizmente outros interlocutores começaram a dialogar com a cultura em seu lugar sem a devida competência, mas com muita seriedade. Os danos para a Igreja são grandes e podem ser visto por aí, pois, quando o sal se torna insípido e a luz é colocada dentro de um barril, o que se pode esperar? Embora a situação seja essa, penso que ainda há tempo para recomeçar o diálogo e já estamos atrasados, se nos preocupa tanto o presente como o futuro escatológico. O desafio para o reinicio da conversa é: Como construir um relacionamento (dialogo) entre Evangelho e Cultura que seja biblicamente sustentável e culturalmente relevante? Precisamos primeiramente assumir este desafio antes de afirmarmos qualquer coisa. A igreja evangélica brasileira em geral, está em divida com isso.


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Notas:
[1] - Diretor Acadêmico da Faculdade de Teologia Metodista Livre de São Paulo, Mestre em Ciências da Religião pela PUC-SP e Doutor em Ministério-DMin., pela FTSA de Londrina. Vice-Presidente da Aetal Continental.
[2] - MADURO, Otto, Mapas para a Festa; Reflexões Latino-Americanas sobre a Crise e o Conhecimento, Vozes, SP, 1994, pp. 175-176.
[3] -TASKER, R.V.G, Mateus Introdução e Comentários, Vida Nova, SP, 1999, Série Cultura Bíblica, pp.48-51.
[4] - Usei como referencia para meu comentário o texto de DULLES, Avery “The Gospel and Culture: Narrowing the Gap” publicado no Woodstock Report do Woodstock Theological Center em Março de 1994,
[5] - Esses são termos usados pelos missiólogos quando tratam da relação entre evangelho e cultura e Cristo e as culturas.
[6] - Paul Hiebert afirma que há três princípios que precisamos examinar para entender a tensão dinâmica entre o evangelho e as culturas humanas. Primeiro, o evangelho versus a cultura. O evangelho por sua própria origem divina deve ser separado de qualquer cultura. Em segundo lugar, o evangelho na cultura. Embora o evangelho seja diferente das culturas humanas, ele sempre deve ser expresso em formas culturais.E, terceiro, o evangelho em relação à cultura. O evangelho propondo mudanças para todas as culturas. Ver HIEBERT Paul G., O Evangelho e a Diversidade das Culturas”, Vida Nova, SP, 1999, pp.53-58
[7] Woodstock Report, opus cit.
[8] - Ver o comentário sobre o conceito de salvação no livro de Lucas no texto, ´Missão como Mediação da Salvação” in BOSCH, David J, “Missão Transformadora; Mudança de Paradigmas na Teologia da Missão” Sinodal , São Leopoldo, 2002, pp.471-472. Bosch afirma em seu texto que “ para Lucas a salvação é, sobretudo, algo que se realiza nesta vida, hoje.”

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